Em algum lugar do Brasil, neste exato momento, um cliente sai de uma pequena mercearia com pães e leite, sem passar o cartão ou entregar uma nota de dinheiro. Com um simples aceno de cabeça para o dono do balcão, a conta é “anotada”. Essa cena, que parece pertencer a um passado distante, ainda é uma realidade em muitos cantos do país e representa a essência de uma das instituições mais brasileiras que existem: a cultura do fiado.
Mais do que um simples método de pagamento, o fiado foi, por décadas, o pilar que sustentou o comércio de bairro, a rede de segurança de milhões de famílias e a base sobre a qual se construiu a complexa relação do brasileiro com o crédito. Da caderneta de capa dura do armazém ao moderno “Buy Now, Pay Later” (Compre Agora, Pague Depois) dos aplicativos, o DNA do fiado está profundamente enraizado em nossos hábitos de consumo.
Neste artigo completo, vamos mergulhar na história e na psicologia por trás da famosa “caderneta”. Vamos entender como essa relação baseada na confiança moldou o varejo nacional, quais os riscos e benefícios envolvidos e como seu espírito sobrevive hoje em produtos financeiros digitais que movimentam bilhões. Prepare-se para descobrir que o cartão de crédito na sua carteira tem muito mais em comum com o caderninho do seu avô do que você imagina.
O Que é a Cultura do Fiado e Sua Famosa Caderneta?
Para as gerações mais novas, acostumadas com a instantaneidade do Pix e a conveniência do pagamento por aproximação, o conceito de fiado pode parecer arcaico. De forma simples, o fiado é uma modalidade de crédito informal, baseada unicamente na confiança mútua entre o comerciante e o cliente. Não há contrato, análise de crédito no Serasa, nem taxas de juros formalizadas. A única garantia é a palavra, o “fio do bigode”.
O símbolo máximo dessa cultura é a caderneta ou o “caderninho”. Nesse caderno, o dono do estabelecimento anotava, sob o nome de cada cliente, a data e o valor de cada compra feita “fiado”. No dia do pagamento — geralmente atrelado ao dia do recebimento do salário ou da aposentadoria —, o cliente ia até o balcão, quitava a dívida e “limpava o nome” na única central de risco que importava: a do comerciante local.
Essa prática se tornou a principal forma de acesso a bens de consumo para a vasta maioria da população brasileira durante grande parte do século XX. Em um país com acesso restrito a serviços bancários e sem a presença massiva de cartões de crédito, o fiado não era uma opção, era a única solução.
Por Que o Fiado se Tornou o Coração do Comércio Brasileiro?
A hegemonia do fiado não foi um acaso. Ela é o resultado direto da realidade social e econômica do Brasil, moldada por três fatores principais:
1. Instabilidade Econômica e Hiperinflação
Durante os anos 80 e início dos 90, o Brasil viveu um período de hiperinflação galopante. Os preços no supermercado mudavam da manhã para a tarde, e o dinheiro perdia seu valor em questão de horas. Nesse cenário caótico, o fiado oferecia uma espécie de estabilidade. O trabalhador recebia seu salário no início do mês e podia “travar” o preço dos produtos essenciais ao comprá-los na caderneta, pagando a conta no final do mês com o valor nominal, mesmo que a inflação já tivesse corroído parte do poder de compra daquela dívida. Para muitas famílias, era a única forma de garantir o abastecimento da despensa.
2. Falta de Acesso a Serviços Bancários Formais
Até poucas décadas atrás, ter uma conta em banco era um privilégio para poucos. A maior parte da população de baixa renda não tinha acesso a talões de cheque, cartões ou qualquer forma de crédito formal. O “dono da venda”, da padaria ou do açougue se tornava, na prática, o “banqueiro” da comunidade, oferecendo uma linha de crédito vital para o consumo diário. Ele preenchia uma lacuna deixada pelo sistema financeiro tradicional.
3. A Força dos Laços Comunitários
Especialmente em cidades do interior e bairros periféricos das grandes cidades, o comércio era construído sobre relações pessoais. O comerciante conhecia cada cliente pelo nome, sabia onde morava, conhecia sua família e sua história. Essa proximidade criava a moeda mais valiosa de todas: a confiança. O risco de “calote” era mitigado pela pressão social e pela vergonha de ter o nome “sujo” na comunidade. Perder a confiança do comerciante local significava perder o acesso a crédito para itens essenciais.
A Faca de Dois Gumes: Os Riscos e Benefícios do “Anotado na Conta”
Apesar de seu papel crucial, o sistema do fiado sempre foi uma operação de alto risco para ambas as partes, uma verdadeira faca de dois gumes.
Para o Comerciante:
- Benefício – Fidelização do Cliente: Oferecer fiado era a principal ferramenta para construir uma clientela leal. O cliente não ia ao concorrente porque tinha uma relação de confiança e uma “conta aberta” com seu fornecedor de preferência.
- Risco – Inadimplência (o famoso “calote”): Este era o maior pesadelo do comerciante. Um cliente que se mudava, perdia o emprego ou simplesmente decidia não pagar representava um prejuízo direto.
- Risco – Problemas de Fluxo de Caixa: Vender fiado significa entregar a mercadoria hoje para receber o dinheiro só daqui a 30 dias (ou mais). Isso exige que o comerciante tenha um capital de giro robusto para pagar seus próprios fornecedores e despesas, o que era (e ainda é) um desafio gigantesco para pequenos negócios.
Para o Cliente:
- Benefício – Acesso ao Consumo: O fiado funcionava como uma rede de segurança social. Em meses de aperto, desemprego ou despesas inesperadas, a caderneta garantia que a família teria o que comer.
- Risco – Descontrole Financeiro e Superendividamento: A facilidade de “anotar na conta” podia levar a um consumo descontrolado. Sem a dor imediata do pagamento, era fácil perder a noção do tamanho da dívida, que se acumulava e se tornava impagável no final do mês.
- Risco – Relação de Dependência: O cliente ficava “preso” àquele comerciante, sem poder pesquisar preços melhores em outros lugares. Além disso, a dívida podia criar uma relação de poder desigual, abrindo margem para abusos.
A Evolução do Fiado: Da Caderneta ao Cartão de Crédito e Pix Parcelado
Com a estabilização da economia após o Plano Real em 1994 e a gradual bancarização da população, o fiado tradicional começou a perder espaço para formas de crédito mais estruturadas. No entanto, o espírito do fiado não morreu; ele apenas evoluiu.
Fase 1: O Crediário e o Carnê
Grandes redes varejistas, como as Casas Bahia, entenderam a mentalidade do consumidor brasileiro e criaram o crediário. O famoso carnê nada mais era do que uma versão formalizada e em grande escala da caderneta. A confiança pessoal foi substituída por uma análise de crédito rudimentar, e a ausência de juros deu lugar a parcelas com taxas embutidas. O carnê permitiu que milhões de brasileiros tivessem acesso a bens de consumo duráveis (geladeiras, TVs, móveis) pela primeira vez, pagando em “suaves prestações mensais”.
Fase 2: O Cartão de Loja (Private Label)
O passo seguinte foi a criação dos cartões de loja. Um cartão de plástico que só podia ser usado em uma determinada rede de lojas. Era uma evolução do carnê, oferecendo um limite de crédito rotativo e mais flexibilidade, mas mantendo o cliente fiel àquela marca específica. Era o “fiado moderno” daquele varejista.
Fase 3: A Popularização do Cartão de Crédito
A grande revolução veio com a massificação do cartão de crédito com bandeira (Visa, Mastercard, etc.). Ele universalizou o conceito do “compre agora, pague depois”. A confiança pessoal do dono da venda foi totalmente substituída por algoritmos e scores de crédito (Serasa, SPC, Boa Vista). A caderneta física virou uma fatura digital, e o risco da inadimplência, que antes era do comerciante, foi transferido para as instituições financeiras (bancos e fintechs), que cobram juros altos para compensar esse risco.
Fase 4: O Fiado Digital – “Buy Now, Pay Later” (BNPL) e Pix Parcelado
Hoje, vivemos a mais nova encarnação da cultura do fiado. Serviços de “Buy Now, Pay Later” (BNPL), como Koin e Addi, e o Pix Parcelado oferecido por diversas fintechs, resgatam a simplicidade do “pegar agora e pagar depois”, mas com uma roupagem tecnológica. Com aprovação de crédito instantânea e sem a necessidade de um cartão de crédito tradicional, eles atraem principalmente o público jovem e desbancarizado, provando que o desejo fundamental por acesso a crédito flexível continua mais vivo do que nunca.
O DNA do Fiado: Como a Confiança Moldou o Consumidor e o Crédito Moderno no Brasil
A longa história do fiado deixou marcas indeléveis no comportamento do consumidor brasileiro e na estrutura do nosso mercado de crédito.
- A Cultura do Parcelamento: O brasileiro é um dos povos que mais utiliza o pagamento parcelado no mundo. O hábito de “dividir no cartão”, mesmo para compras de baixo valor, é um herdeiro direto da lógica do carnê e da caderneta.
- A Relação Pessoal com o Crédito: Mesmo com toda a tecnologia, muitos brasileiros ainda valorizam a relação pessoal na hora de obter crédito. A figura do “gerente amigo” no banco ou a busca por cooperativas de crédito são resquícios da confiança depositada no “dono da venda”.
- Inovação no Setor Financeiro: A necessidade de criar soluções de crédito para uma população com histórico informal e sem acesso a bancos impulsionou a inovação. O sucesso do crediário e, mais recentemente, das fintechs de BNPL, mostra que entender a “alma do fiado” é um diferencial competitivo no Brasil.
A Caderneta Vive, em Novos Formatos
O fiado, em sua forma pura e baseada no “fio do bigode”, pode estar se tornando mais raro, mas sua essência é imortal. Ele foi a resposta de um povo a um sistema econômico instável e excludente. Foi uma escola de finanças na prática, ensinando sobre crédito, dívida, confiança e risco para gerações de comerciantes e consumidores.
Hoje, quando você parcela uma compra online, usa o limite do seu cartão de crédito para uma emergência ou adere a um serviço de “Compre Agora, Pague Depois”, está participando de um ecossistema que foi diretamente moldado por aquela simples caderneta de anotações. A tecnologia mudou, os intermediários são outros e os riscos são calculados por algoritmos, mas a necessidade humana fundamental que o fiado atendia — a de equilibrar os desejos de consumo com as realidades do orçamento — continua a ser o motor que impulsiona o vasto e complexo mercado de crédito no Brasil. Entender o passado da caderneta é, portanto, essencial para navegar no futuro das suas finanças.